ATOS GOVERNAMENTAIS COMO FATOS SECUNDÁRIOS (CONCA

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Antes do enfrentamento do tema, sinto-me na obrigação de lembrar a você, querido leitor, o ineditismo de tudo o que estamos vivendo, já que a pandemia do Covid-19 e o isolamento social por ela gerado afetaram as relações jurídicas de uma forma jamais vista.

A pandemia do Covid-19, os atos governamentais, o isolamento social, o uso de máscaras, entre outros fatos, são eventos jamais vivenciados por nós, brasileiros.

Esse ineditismo, entretanto, não foi levado em conta por alguns juristas, que passaram a buscar precedentes jurisprudenciais para o enfrentamento dos impactos sofridos por empregados e empregadores, numa desvairada e inócua procura de algo que simplesmente não existe.

Ora, se jamais ocorreu o que estamos presenciando, fácil se torna concluir que não há precedentes jurisprudenciais que se encaixem nos conflitos jurídicos provocados por esses fatos.

Partindo dessa premissa, vou demonstrar, a partir de agora, a inaplicabilidade do factum principis (art. 486 da CLT) às rescisões contratuais decorrentes dos efeitos dessa pandemia.

Sabemos que normas estaduais e municipais brotaram, em face da pandemia do Covid-19, impondo o isolamento social e determinando o fechamento de empresas de diversos seguimentos, mantendo em funcionamento apenas aquelas que atuavam em atividades consideradas essenciais.

As empresas atingidas pelos decretos governamentais passaram a conviver com um inesperado e substancial prejuízo financeiro, gerando a falsa percepção de que os entes públicos seriam os “culpados” pelos danos, acalorando a tese de que as rescisões contratuais estariam ocorrendo por conta dos atos administrativos de clausura social, o que levou alguns juristas a defenderem o factum principis como motivador da extinção das relações de emprego.

Sem açodamento, o estudioso do direito do trabalho, sombreado pela cálida prudência da equidade, vai perceber que os decretos de isolamento social foram publicados por conta de uma “causa maior”, inevitável, imprevisível e irresistível.

Essa “causa principal” não só precedeu os atos governamentais, mas deu-lhes “causa”.

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Essa “causa principal” foi o fato gerador de todos os demais acontecimentos, os quais, por esse motivo, são chamados de “secundários”.

 A pandemia do Covid-19 é a “causa principal”, a “causa maior”, a “causa fundamental”, ou simplesmente o fato gerador dos efeitos jurídicos que atingiram as relações de emprego.

Os atos governamentais, o isolamento social, o uso de máscaras, entre outros episódios, são “causas secundárias”, “causas acessórias”, “causas menores”, ou simplesmente “concausas”.

Eis a importância de se distinguir a “causa principal” da “causa secundária” (ou concausa).

A pandemia do Covid-19 é a causa principal, o acontecimento capital, o fato gerador de tudo aquilo que veio a afetar as relações de emprego. O isolamento social, por conseguinte, foi gerado pela pandemia do Covid-19, assim como os decretos que determinaram o fechamento das empresas.

Destarte, as rescisões contratuais, nas empresas afetadas pelo isolamento social, não foram provocadas pelos atos governamentais, mas pela pandemia do Covid-19. O nexo causal está aí alicerçado, entre a força maior (causa) e as rescisões (efeito).

O nexo causal se encontra na vinculação entre o dano e o seu fato gerador.

Da pandemia do Covid-19 (força maior), considerada a causa principal, os demais fatos desaguaram (isolamento social, fechamento de estabelecimentos, uso de máscaras etc.), mas esses eventos não podem ser considerados como causadores das rescisões contratuais, já que foram “eventos secundários” (“acessórios”), provindos de uma “causa maior”.

Esse fato principal foi o que efetivamente causou o dano.

A nossa causa principal é a pandemia do Covid-19, classificada, com naturalidade pueril, como típico fato de força maior. Uma das concausas está nos atos normativos que determinaram o fechamento de inúmeros estabelecimentos empresariais.

Aqueles que defendem a rescisão por factum principis não foram capazes de enxergar a dependência entre as causas (principal e secundária).

Os atos governamentais não iniciaram o processo causal, pois o isolamento social foi adotado com o objetivo de diminuir o contágio e salvar vidas.

Não há dúvida de que o confinamento agravou os negativos impactos sobre as relações de emprego, mas os atos governamentais não possuem o condão de elidir o nexo causal gerado pela causa principal, tornando-se, por conseguinte, acessórios e, com isso, descartáveis para fins de caracterização do motivo ensejador das rescisões contratuais.

Os atos governamentais, deste modo, têm natureza jurídica de concausa superveniente, pois nasceram depois do nexo causal gerado pela causa principal, apenas “contribuindo” para as rescisões contratuais, mas sem o poder de afastar a avassaladora força advinda da inevitabilidade, da imprevisibilidade e da irresistibilidade daquela.

Para finalizar, trago à baila uma diferença basilar entre as rescisões por força maior e por factum principis, contida especificamente na “motivação”.

O art. 486 da CLT, que trata da rescisão contratual por factum principis, assevera que a paralisação temporária ou definitiva do trabalho, para fins de resilição contratual, tem que ser motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade.

O motivo da rescisão por factum principis, portanto, está no seu fato principal, que é o ato governamental, inexistindo uma causa imprevisível que o antecedeu.

Na rescisão por força maior, a motivação está no próprio acontecimento, marcado pela inevitabilidade e pela imprevisibilidade.

Observem que não me filio àquela corrente doutrinária que enxerga no factum principis uma espécie de força maior. Entendo que a imprevisibilidade da força maior é o seu pressuposto primário, a sua premissa básica, pois ela alcança o próprio fato e também os sujeitos da relação de emprego. A imprevisibilidade do factum principis é mitigada, já que está restrita aos sujeitos contratuais, não atingindo o ente público responsável pelo ato, porque o seu fato gerador é um ato administrativo ou normativo, e, como tal, cogitado, preparado e executado pela pessoa jurídica de direito público, sendo, por isso, previsível no seu nascedouro.

Diante de tudo o que foi dito, a rescisão por factum principis, prevista no art. 486 da CLT, não se aplica às relações de emprego atingidas pela pandemia do Covid-19, mostrando-se descabida e perversa qualquer cogitação de responsabilização dos entes públicos pelos prejuízos sofridos por empregadores e empregados.